Os comitês de ética e a angústia do professor impedido de ser professor

Os comitês de ética e a angústia do professor impedido de ser professor

Por Tânia C B Cabral

A pandemia veio apenas mostrar a situação absurda em que se encontra a educação no país, com os professores do ensino privado (em todos os níveis de ensino) e os do ensino básico público vivendo a angústia da suspensão de sua autoridade pedagógica. O resultado tem sido a manutenção da farsa no ensino e na pesquisa e o alargamento do abismo social e econômico. Nada mudou, apenas ficou evidente o que já havia.

As instituições de ensino estão ameaçadas pelo retorno à inquisição medieval (exagero?), vigiadas e controladas sob ameaça de punições. Isso ocorre principalmente nas áreas das Ciências Humanas e nas Ciências Sociais, não obstante o sistema, por meio de documentos legais, pedir que o profissional que atua como professor seja criativo, comprometido na educação para que possa formar cidadãos críticos (chavão muito repetido). Entretanto, as imposições do sistema subtraem a possibilidade de escolha e de decisão do professor.

Para manter o professor sob vigilância (há quem fale em cabresto) instituem-se comissões para avaliar a produção acadêmica visando a progressão na carreira ou a manutenção da dedicação exclusiva, com implicações salariais. Em especial, instituíram-se os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) que passaram a funcionar em todas as instituições de ensino superior, públicas e privadas, com a missão de “avaliar” quais pesquisas podem ser conduzidas.

Com relação às pesquisas, inicialmente os CEPs nascem por exigência da área da saúde, de certo modo com respaldo jurídico, para normatizar as condutas do pesquisador em estudos envolvendo seres humanos. No “Manual operacional para comitês de ética em pesquisa”[1] , documento publicado em 2002 pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS – Ministério da Saúde), por exemplo, cento e vinte e cinco páginas descrevem o funcionamento dos CEPs. Nesse documento são indicados parâmetros em relação aos quais os avaliadores devem prestar atenção por sinalizarem situações em que os sujeitos envolvidos nas pesquisas podem ter sua integridade atingida.

Os CEPs foram constituídos e tornaram-se obrigatórios nas IES. Seu poder de definir a condução das pesquisas na área da saúde estendeu-se a outros campos do conhecimento, como a área das Ciências Humanas que abrange a Educação. Isso consta no documento. A consequência é que estudantes e professores que lidam com Educação vivem o estresse de ter de submeter seus projetos à Plataforma Brasil – base nacional de registros de pesquisas – para aprovação e possível acompanhamento (monitoramento) da execução do trabalho

“Ela [a plataforma] permite que as pesquisas sejam acompanhadas em seus diferentes estágios – desde sua submissão até a aprovação final pelo CEP e pela Conep, quando necessário – possibilitando inclusive o acompanhamento da fase de campo, o envio de relatórios parciais e dos relatórios finais das pesquisas (quando concluídas).” (https://plataformabrasil.saude.gov.br/login.jsf)

A prática tem mostrado quão longo é o tempo de uma submissão de um projeto, entre idas e vindas para ajustes que satisfaçam às “recomendações” dos avaliadores, aumentando a angústia do pesquisador com relação à aprovação/rejeição de seu trabalho. Orwell, nunca foi tão atual: “Big Brother is watching you”. O que acontece nas salas de aulas está sendo atentamente vigiado: Como estão ocorrendo as práticas do professor que apenas quer continuar estudando para fazer a tão propalada diferença na Educação? Afinal, ele aprendeu tanto enquanto estava sendo preparado para o honroso exercício do magistério, estudou técnicas de ensino, psicologia, didática, metodologias diversas, epistemologia da disciplina com a qual lidaria, filosofia, etc.

O professor que vivencia o micromundo da sala de aula diariamente é, por excelência, o sujeito da prática educativa. O professor é responsável pela condução dos processos de aprendizagem e precisa eleger metodologias de ensino e estratégias didáticas a serem usadas na implementação de produtos educacionais. Traz sempre o que de melhor encontra para o aprendizado dos alunos no momento que vive. Sim, produto educacional é a denominação moderna para a coletânea de recursos que o professor que atua em sua própria sala de aula escolhe ou cria, com o objetivo de abordar assuntos e tópicos nas disciplinas ou matérias. É o saudável antigo com nome novo.

Todo professor pensa e constantemente elabora sequências de atividades. Muitos, entusiasmados com a disciplina que ensinam e fãs de tecnologia, ousam desenvolver algum aplicativo computacional ou a usar aplicativos interativos como forma de motivar o aluno. Os que vieram da tradição dos materiais concretos, como muitos professores de matemática, sempre gostam de abordar e resolver problemas epistemológicos que ocorrem na aprendizagem de conceitos importantes, construindo materiais e/ou aplicando jogos. Quem não ouviu falar de materiais (há vários) para o ensino de frações? E o material Montessori para ensinar as crianças a contar e fazer contas? Hoje, em plena pandemia, alguns aceitam o desafio de produzir conjuntos de vídeo-aulas para dar apoio aos alunos fora dos encontros síncronos. Os professores de práticas, por exemplo, hoje sonham com laboratórios virtuais em que os experimentos ajudem o aluno na elaboração conceitual.

Portanto, produto educacional é o nome novo para o eterno conjunto de recursos que sempre foram projetados pelo professor para evitar que o aluno mergulhe na ignorância (esta que está em alta hoje em dia…). Porém, se o professor declarar essa vontade basilar e espontânea de mudar sua própria sala de aula sob a forma de um projeto de pesquisa, ele terá de submeter seu projeto de trabalho ao CEP. Declarar que a criação de recursos para suas aulas e que suas ações pedagógicas, visando conduzir os processos de aprendizagem conforme princípios firmados ao longo de seus anos de trabalho, ocorrem à luz de estudos, de pesquisas e de trocas de ideias com outros professores-pesquisadores, coloca-o sob a vigilância de uma autoridade que nada tem a ver com educação. Nada fará diferente do que sempre fez, entretanto, essa declaração, necessária em cursos de pós-graduação, o submete a julgamento estranho ao âmbito do curso. O CEP decidirá se ele poderá exibir, ou não, sua prática educativa de cada dia como resultado de pesquisa acadêmica. (“Eu vivo preso a sua senha, sou enganado… o patrão nosso de cada dia, dia após dia…” Intrigante esse Ney Matogrosso…)

Essa é a situação absurda a que chegamos: o professor não pode ser professor, não pode ser professor-pesquisador. Ao declarar sua intenção, o professor precisa submeter ao CEP sua proposta didática. Se simplesmente declarar a estratégia didática que usa para abordar conceitos que, por exemplo, formam o pensamento funcional em um ambiente de diálogo e desafio, o professor precisa apresentar os termos de consentimento de livre participação dos alunos para a efetivação das suas próprias aulas. Na Educação Matemática, foram anos de debates e estudos para estabelecer e manter a possibilidade de o professor pesquisar sua própria sala de aula.

Poderia contar algumas passagens envolvendo CEPs. Casos em que os pesquisadores relatam sua angústia e resignação diante de exigências feitas em pareceres que demonstram a que nível chegaram as formas de controle: de repente, o que os professores dedicados sempre fizeram em suas salas de aulas cai em suspeição.

[1] https://conselho.saude.gov.br/biblioteca/livros/Manual_ceps.pdf

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *